Antonio Bras da Silva
Formado em Pedagogia e Bacharel em Direito; Especialista História e Cultura Africana e Afrobrasileira e Ações Afirmativas no Brasil; Presidente da Secretaria Regional do Movimento Negro do PDT/PR.
Resumo
O presente artigo visa mostrar a situação das comunidades quilombolas no Estado do Paraná, principalmente nos aspectos relacionados à saúde, educação e trabalho, baseando-se nos levantamentos realizados pelo Grupo de Trabalho Clóvis Moura, bem como as ações já realizadas para a melhoria na qualidade de vida dos quilombolas e as necessidades identificadas, que ainda precisam de uma ação mais efetiva de políticas públicas capazes de atender tais necessidades
INTRODUÇÃO
Muito se tem escrito sobre quilombos no Brasil havendo inúmeras publicações que abordam teoricamente, nas áreas das ciências sociais, questões sobre eles, da sua gente, retratando suas múltiplas dimensões, focando, entre outros tantos aspectos, os elementos tradicionais das comunidades negras.
As comunidades de remanescentes de quilombolas estão em áreas que trazem consigo as marcas da história da resistência negra à escravidão no Brasil.
A maior parte dos territórios quilombolas formou-se em áreas pouco agricultáveis, também chamadas de “terras dobradas” por serem regiões de pouco interesse e difícil acesso, gerando o isolamento dessas comunidades e com isso uma série de especificidades no tratamento dos bens materiais e imateriais.
Tendo clara a necessidade de tratamento diferenciado aos cidadãos remanescentes das comunidades quilombolas, a Constituição Federal, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), consagra-lhes o direito à propriedade de suas terras, sendo considerado um importante instrumento jurídico para fundamentar a construção de uma política fundiária baseada no princípio de respeito aos direitos territoriais dos grupos étnicos tradicionais.
A forma como a revelação da existência das Comunidades Remanescentes de Quilombos – CRQs, “Terras de Pretos” ou de Comunidades Negras Tradicionais - CNTs, se apresentou no Paraná difere em muito de outros estados onde o trabalho junto a tais grupos, já se desenvolve, em avançado processo nos seus levantamentos, sistematização e planejamento das políticas aplicáveis a tais universos.
Em novembro de 2004, durante o I Encontro de Educadores/as Negros/as do Paraná, chamado pelo Movimento Negro e com amplo apoio do Governo do Estado, as informações trazidas à tona por seus participantes provocaram o conhecimento de um outro quadro e o interesse, pois os indicativos aumentavam o número de comunidades possíveis para oito ou, quem sabe, até para 10 ainda que não muito bem definidas e/ou localizadas.
O debate alcançado no encontro criou uma grande expectativa entre os educadores e as Secretarias de Estado da Educação, da Cultura e a Especial para Assuntos Estratégicos, que inicialmente trocando informações, se viram compelidas a conhecer tal realidade, cada qual sob seu enfoque.
Com o objetivo de apresentar os diagnósticos sócio-econômicos e educacionais das Comunidades Quilombolas, bem como da discussão de políticas públicas de Estado que estão sendo construídas nas áreas da Educação e Assistência Técnica Rural, a Secretaria da Educação do Paraná (SEED/PR) em parceira com o Grupo de Trabalho Clóvis Moura promoveu o Encontro de Educação e Políticas Públicas para as Comunidades Quilombolas do Paraná no Centro de Formação Continuada Faxinal do Céu, no município de Pinhão, no período de 12 a 16 de julho de 2009.
O evento contou com a participação de aproximadamente 300 pessoas representantes de comunidades remanescentes de Quilombo, além da participação do Ministério Público do Paraná, dos promotores públicos, dos secretários municipais de educação e dos representantes das instituições envolvidas com as questões dos quilombolas.
Durante o Encontro, vários grupos tiveram a oportunidade de expor suas dificuldades e fazer reivindicações para melhoria no atendimento das necessidades básicas das comunidades e puderam ouvir dos palestrantes orientações e esclarecimentos sobre seus direitos, sobre projetos e programas dos governos e foram incentivados para que as comunidades quilombolas possam transformar as ações de políticas públicas em realidade para os quilombolas.
COMUNIDADES NEGRAS TRADICIONAIS E REMANESCENTES DE QUILOMBOS DO PARANÁ
Em 1853, quando ocorreu a emancipação política do Paraná, 40% da população do Estado era composta por negros. Hoje, segundo dados do IBGE, eles representam 28,5%, o que confere ao Paraná a maior população negra do Sul do país.
A visão de um Paraná sem a existência de população negra vem sendo substituída pela realidade de uma cidadania tardiamente reconhecida, para compor o território paranaense.
O presente artigo foi elaborado com base no trabalho de pesquisa realizado pelo Grupo de Trabalho Clóvis Moura (GTCM) no período de 2005 a 2008, onde são apresentados os dados e as estatísticas do que foi alcançado, no Levantamento Básico de Comunidades Negras, remanescentes de quilombos ou não, historicamente e até agora invisibilizadas e/ou suprimidas pelas diversas esferas do poder e da sociedade civil, para, além de reavaliar a presença dos pressupostos africanos no Estado, atingir objetivos mais imediatos: torná-las alvo de políticas públicas que estão sendo disponibilizadas a outras comunidades e segmentos sociais, em ação de inclusão social, assim, pretende-se demonstrar a situação das Comunidades Negras Tradicionais e Remanescentes dos Quilombos no Estado do Paraná, com o objetivo de subsidiar a construção de um modelo de Política Pública para o desenvolvimento sustentável para estas Comunidades.
Deste modo, dos trabalhos de campo realizados pelo GTCM, no mapeamento e identificação destas comunidades foram selecionados os dados que descrevem o perfil populacional das comunidades; as condições de vida nas comunidades quilombolas; a situação sobre a educação e saúde; a participação em programas assistenciais; as fontes de geração de renda; pois são aspectos mensuráveis, que retratam a situação dessas comunidades.
Hoje, essa população está distribuída em mais ou menos 100 (cem) comunidades, que sobrevivem da agricultura de subsistência, caça, pesca e extrativismo, sendo que somente 36 destes grupos familiares foram certificados pela Fundação Cultural Palmares, já que se auto declararam como Comunidades de Remanescentes de Quilombos.
Entre os vários problemas nessas comunidades o mais grave, é a falta de documentação básica. Muitos sequer têm certidão de nascimento, que é gratuita e assegurada na Constituição Federal — gratuidade é do desconhecimento de todos, ou seja, essas pessoas não existem para o Estado.
A falta dos documentos, Carteira de Identidade, CPF, Título de Eleitor torna essas pessoas excluídas do seu direito de cidadania, impossibilitando-os de reivindicar seus direitos.
Outra questão que aflige os moradores das Comunidades é a falta de registro de suas terras. Essas pessoas habitam a terra há muitos anos, séculos, transmitindo-a geração após geração, porém sem qualquer documentação que torne legal a sua posse sobre as mesmas.
Para mapear as comunidades quilombolas do Paraná, o grupo de trabalho Clóvis Moura iniciou a partir de 2003, a identificação de áreas e de populações de negros remanescentes de quilombos no Paraná, visando levantar dados a respeito da escolaridade, ocupação, benefícios sociais, população, acesso à saúde e educação dessas populações. Já são 50 as áreas identificadas e 36 classificadas pela fundação Palmares, resultados de um trabalho de sete anos.
Estas áreas estão localizadas no Vale do Ribeira, no Sudeste e no Norte Pioneiro e estão agrupadas em 6 (seis) mesorregiões, sendo a que a Mesorregião Metropolitana de Curitiba é a maior delas, com 4 (quatro) microrregiões. As demais Mesorregiões são: Centro-Oriental Paranaense, Centro-Sul Paranaense, Sudeste Paranaense, Oeste Paranaense e Norte Pioneiro Paranaense.
Educação nas Comunidades Quilombolas do Paraná
A situação da educação nas comunidades quilombolas do Paraná se insere na problemática educacional do país. Ainda é comum observar crianças e adolescentes fora da escola e pessoas adultas analfabetas.
As comunidades têm deficiências escolares que vão desde a dificuldade de acesso, nas localidades onde há escola, mesmo em condições precárias, até a ausência completa de iniciativas que permitam que se chegue ao universo escolar.
De acordo com o Censo Escolar de 2007, o Paraná possui 2.228 alunos matriculados em 17 escolas localizadas em áreas remanescentes de quilombos.
A maioria da população tem idade entre 18 e 65 anos e o índice de analfabetismo é relativamente alto, em torno de 10% a 12% e em algumas comunidades os que concluem a 4ª série não passam de 30% e menos de 10% possui o Ensino Fundamental completo.
A população com idade entre 14 e 18 anos é bastante reduzida, mas apresenta maior índice de escolaridade: apenas 20% cursou somente até a 4ª série, boa parte possui Ensino Médio e proporcionalmente é a população que mais atingiu o nível Pós Médio. É, também, a faixa etária com menor incidência de analfabetismo, apenas 4%.
A dificuldade de acesso à escola é, com certeza, o fator que mais contribui para esse quadro. Enquanto em algumas poucas comunidades há pelo menos uma escola de 1ª à 4ª série, para atender a população, em outras a escola está localizada a uma distância de até 40 km. O transporte dos alunos, realizado em ônibus, kombis, vans e automóveis muito antigos, comprometem a segurança dos usuários.
A permanência dos alunos nessas escolas torna-se um problema evidente, quando aliado à distância percorrida até chegar ao local (ponto) por onde passam esses transportes. Isso contribui para a desmotivação da criança, do jovem e até do adulto para ir ao encontro da instrução escolar.
E, por fim, os conteúdos programáticos destas instituições, na maioria das vezes, não mantêm uma aproximação dos saberes locais, sem percepção identitária e sem a interação comunidade tradicional / sociedade contemporânea.
Dentre as ações afirmativas da Secretaria de Educação do Paraná está a criação do Núcleo de Educação das Relações Etnorraciais e da Afro-descendência, o desenvolvimento de conteúdos educacionais próprios para as comunidades quilombolas, a construção de escolas e a capacitação de professores para atuarem na educação de jovens e adultos nas localidades onde vivem os quilombolas.
Condições de vida de produção e cultura nas comunidades tradicionais negras e quilombolas no Estado do Paraná
Em sua forma de organização social e de produção — quando há abundância de terras para plantar, estas populações seguem normas e critérios praticados pelos mais antigos, ou seja, pelos fundadores da Comunidade, com quem aprenderam fazendo questão de manter e preservar este conhecimento.
Possuem a mesma forma de organização cooperativista que possibilitou no passado e possibilita ainda nos dias de hoje, uma economia de abundância, ou seja, uma economia de subsistência, com pequenos roçados, produzindo de tudo para o sustento da família e das criações.
Com base na diversificada agricultura praticada nos Quilombos e nas Comunidades Tradicionais Negras Paranaenses, pelos grupos familiares que nelas habitam, passam as pequenas lavouras de mandioca, milho, banana e feijão a ter um relevante destaque no panorama alimentar da população em comparação com a agricultura praticada nos latifúndios.
O trabalho geralmente é realizado por homem e mulher com idade e condições físicas no limite para a sua execução, no entanto, não é difícil encontrar também crianças menores de 14 anos de idade realizando funções destinadas a adultos.
Com exceção, da função “trabalhadores avulsos”, há um elevado percentual de pessoas desocupadas em todas as faixas etárias, sobretudo entre a população economicamente ativa (idade entre 18 a 65 anos) da região.
Atualmente, 22 comunidades já têm programas de hortas comunitárias feitas pela Emater, que preservam as características culturais de cada grupo.
Hoje em dia, as Comunidades Negras sobrevivem de suas atividades na terra como: plantio, colheita, coleta de frutos nativos regionais e da produção de subsistência. Sobrevivem também da caça, quando ela existe, da pesca, da plantação de bananas, do palmito, na região do litoral paranaense.
Por serem os quilombos, comunidades basicamente agrícolas, a ocupação formal no mercado de trabalho é muito pequena, apenas 11%, e boa parcela da população trabalha como bóia-fria.
Outro aspecto considerado na geração de renda das comunidades remanescentes de quilombos e comunidades negras tradicionais, são os benefícios sociais que os moradores recebem, porém somente uma parcela muito pequena dos moradores conta com tais aquisições.
A quase totalidade (96,7%) da população não conta com nenhum benefício social, mesmo aqueles que deveriam fazer parte da aquisição obrigatória, como bolsa família, bolsa escola etc. Talvez, o baixo número de crianças nas escolas e a ausência de documentos pessoais são elementos que contribuem para esta situação.
Para promover uma mudança nessa situação, a Secretaria Especial de Relações com a Comunidade desenvolve projetos que trabalham diretamente com comunidades quilombolas, dentro do Programa Universidade Sem Fronteiras. Os projetos vão da assistência técnica e capacitação em agroecologia até o trabalho com identidade cultural das comunidades. Grande parte dos projetos é voltada para a geração de emprego e renda para as comunidades, como o projeto Roteiro Kundun Balê – Turismo como estratégia de fixação territorial e afirmação cultural na Comunidade Quilombola Paiol de Telha, feito no centro-oeste do Paraná, na região de Guarapuava.
Saúde e condições sócio ambientais
Existe uma série de dificuldades e reinvidicações que, embora não estejam relatadas por comunidades específicas, apontaram seus principais problemas.
Em muitas comunidades não existe assistência médica, odontológica e outros recursos para o funcionamento dos postos de saúde (equipamentos, medicamentos e até mesmo de profissionais habilitados nas especificidades dos problemas de saúde da população negra.
Os Postos de Saúde, quando existem, ficam distantes das comunidades e em algumas localidades o hospital chega a mais de 100 Km de distância.
A falta de saneamento básico contamina o solo e a água, fato que explica a grande quantidade de crianças e adultos apresentando sintomas graves de verminoses. Também não há orientação e assistência para gestantes, além do planejamento familiar, afetando a saúde e a qualidade de vida dessas comunidades.
As doenças mais comuns na população negra, que exigem a presença de profissionais com conhecimentos na área são: anemia falciforme, hipertensão, diabetes, glaucoma, dentre outras.
Outro aspecto relevante a ser considerado é a medicina caseira baseada em conhecimentos etnobotânicos e etnobiológicos dessas comunidades. Podemos afirmar com certeza que essas comunidades só sobreviveram à total ausência das políticas públicas de saúde porque contavam com seus conhecimentos tradicionais.
Infelizmente, ainda não há, com raras exceções, uma política de incentivo ao uso de remédios caseiros por parte dos órgãos governamentais brasileiros.
Seria importante implantar, nessas comunidades, programas que valorizassem os conhecimentos tradicionais em plantas medicinais; além de possibilitar a capacitação, disponibilizando aos quilombolas uma referência teórica sobre as plantas medicinais usadas na preparação de remédios caseiros por eles usados, incluindo cuidados no preparo, na coleta e no armazenamento das ervas, contribuindo para gerar segurança nos remédios produzidos por eles.
Há um longo caminho a ser percorrido, e muitos desafios a serem vencidos pela Secretaria de Saúde (SESA), que pretende executar um programa de incentivo, treinamento e qualificação às Secretarias Municipais de Saúde, de ação nas comunidades quilombolas e sobre a Saúde da População Negra, inclusive com a criação do Comitê Gestor de Saúde da População Negra.
Considerações Finais
Os quilombos têm uma importância histórica muito grande, pois não são apenas uma reunião de afro-descendentes, mas os quilombolas já trabalham, há varias gerações, como uma cooperativa, eles carregam toda uma questão de trabalho comunitário.
O trabalho de campo realizados pelo GTCM, no mapeamento e identificação das comunidades quilombolas no Paraná, possibilitaram uma visão mais ampla e clara do perfil populacional dessas comunidades, as condições de vida; a situação sobre a educação e saúde; a participação em programas assistenciais; as fontes de geração de renda, que retratam a situação dessas comunidades.
A partir dos levantamentos, o grupo se articulou com o governo estadual e federal para reconhecer os direitos básicos (água, luz, moradia, educação) das comunidades e incluí-las em programas sociais. Das 50 comunidades visitadas, 14 já são reconhecidas pelo governo federal e pela Fundação Quilombo dos Palmares como quilombolas.
O apoio estadual veio através do programa “Revelando um Paraná Quilombola”. O governo está ouvindo os quilombolas, o que é inédito na história do país, para que a partir de agora essas comunidades possam se desenvolver com mais segurança, com seus direitos de cidadania garantidos.
É preciso refletir sobre possíveis caminhos para interagir com estas comunidades, a fim de promover as mudanças que elas julgarem necessárias. É de suma importância investigar a forma como a comunidade constrói suas representações de mundo, as quais interferem diretamente nas práticas relacionadas ao dia a dia.
A partir das reivindicações construídas pelos moradores locais, faz-se necessário articulá-los às entidades políticas que possam efetivamente transformar esses projetos em políticas públicas para a região.
É importante sempre preservar e incentivar a autonomia da comunidade em suas decisões e na sua participação política, pois se não forem eles mesmo os fomentadores das mudanças que desejam para si, não vemos como as ações podem ter durabilidade e impactos significativos.